Laerte


Créditos: gabriel quintão

Aos 62 anos, Laerte é um dos cartunistas mais admirados e respeitados do Brasil e sempre transcendeu em talento. Mas, em 2009, quando passou a se vestir com roupas femininas, também passou a transcender o gênero. 

Como a arte imita a vida (ou o contrário), Laerte fez com que seu alter-ego nas tirinhas, Hugo Baracchini, começasse a se travestir em 2004, cinco anos antes de o cartunista perceber que esse desejo não era apenas de seu personagem. Junto com seu novo eu, Laerte passou a contestar valores, provocando reações e testando limites de liberdade individual. De novo, Laerte transcendeu. Além de artista, ganhou um novo papel, o de contestador do status quo.


O personagem Hugo Baracchini na primeira tirinha travestido, publicada em 2004

Ainda que o mundo continue se referindo a Laerte como “o cartunista”, “o artista” etc., o próprio já não usa mais o artigo masculino para se definir. Justo, afinal, alguém que use unhas e batom vermelhos, pernas caprichadamente depiladas, vestido tubinho, colares, pulseiras, brincos e anéis, é mesmo uma mulher. Mesmo que tenha decidido tornar-se uma aos quase 60 anos de idade.

Em entrevista exclusiva ao Virgula Lifestyle, Laerte usou um vestido herdado de sua mãe, mostrou os itens de beleza que carrega em sua bolsa e falou de assuntos tão distantes quanto moda e Feliciano, trabalho e sexo. “Uma mulher pode sair de coturno, jeans, casaco de couro, cabelo curto, sem maquiagem e não será questionada. Um homem que coloca uma saia, imediatamente vai para o campo do esquisito e do bizarro. Existe todo um julgamento pronto”, diz. Leia a entrevista completa.

Você havia dito em uma entrevista de 2010 que se envergonhava de quase tudo o que produziu em 40 anos de carreira. Você ainda se sente assim?

Eu estava em um momento especial quando disse aquilo. Provavelmente a palavra vergonha estava vinculada ao sentimento que eu tinha naquela hora. Tento não ter orgulho ou vergonha de nada. Não me faz muito bem pensar em meu trabalho como algo sobre o qual eu tenha que me orgulhar ou me envergonhar. Mas meu maior orgulho em minha carreira é o fato de ter conseguido mantê-la até agora [risos]. Tenho mais preocupação em saber o que está por trás daquele trabalho e o que o motiva, do que saber se consegui atingir um determinado objetivo com ele. Isso é mais importante do saber se o resultado será ou não bom.

Você é muito autocrítico?

Sou. O trabalho nunca sai bom. Sempre fica aquém do que eu gostaria. Como estou dentro de mim, só eu sei o que eu queria fazer, qual era minha expectativa quando iniciei um processo de criação. Quando vejo o que saiu, a diferença é enorme daquilo que eu realmente queria. Na verdade a gente nunca sabe o que quer [risos].

Mas muitos te consideram um gênio por toda a sua obra…

Eu não sou um gênio e tenho vergonha de ser considerado um gênio. Gênio é outra coisa. É um tipo de artista criador ou intelectual, pessoa que se expressa de alguma forma e faz coisas que você não sabe de onde ele tirou, coisas incríveis. Eu nem de longe sou isso.

Como foi o processo de você se vestir como mulher?

Segurei o quanto pude, mas, depois de 2004, quando começaram a surgir os primeiros indícios de uma mudança, quando ficou claro pra mim que era o que eu queria e que era possível, comecei a enfrentar meus terrores específicos. Não é fácil e nem simples pra ninguém. Nesse momento eu estava vivendo outros processos e confusões em minha vida. Eu demorei cinco anos até decidir ‘é agora’. Não tenho mudanças bruscas, tudo em minha vida demora muito. Estou com 62 anos, esse tipo de clareza a maior parte das trans têm na infância. 

Se vestir de mulher é uma maneira de se rebelar contra a ditadura de gêneros?

A ditadura de gêneros envolve a questão do vestuário. O aspecto é uma linguagem e envolve todo o modo como a gente se apresenta, incluindo as roupas. A indumentária feminina é usada para ser usada por mulheres. Mas acontece que as mulheres quebraram isso há muito tempo. Uma mulher pode sair de coturno, jeans, casaco de couro, cabelo curto, sem maquiagem e não será questionada. Um homem que coloca uma saia, imediatamente vai para o campo do esquisito e do bizarro. Existe todo um julgamento pronto.

Antes você se definia como crossdresser e agora se define como travesti. Por que essa mudança?

A palavra crossdresser pra mim se revelou como uma mistificação. É uma criação da classe média para disfarçar determinadas condições sociais. No caso do brasileiro, acho que ela é claramente um divisor para separar a classe social dos de cima – que têm algo a perder ou a esconder -, das travestis que muitas vezes estão exercendo a prostituição. Essa classe média tem horror de ser confundida com pobres. A palavra ‘crossdresser’ é classista.

Você sofre preconceito?

Desde que me visto com roupas femininas, tenho experimentado muito mais afeto e apoio do que estranhamento e agressividade. Ao contrário de muitas travestis e transexuais, que perdem empregos, amigos, família. Até pelo tempo que eu levei pra assumir minha transgeneridade, que foi perto dos 60 anos, quando várias instâncias da minha vida já estavam resolvidas. Minha experiência é excepcional comparada à damaioria das travestis. 

Você encontrou sua feminilidade nesses quatro anos se vestindo como mulher? 

Eu não acho que exista essa coisa de feminilidade. Ao ir nessa direção, inevitavelmente vou atrás de modelos e modos definidos pela sociedade do que é um comportamento feminino. Por exemplo: mulheres se sentam de pernas fechadas. Antes eu sentava com as pernas abertas. Por que eu sento assim agora? Por que eu quero ter peito? Não tenho como explicar, não sei por que eu estou com vontade disso. O que quer dizer o modelo feminino pra mim? Se eu contesto e me oponho a ele, por que o persigo? Mas tampouco é um problema pra mim que não existam respostas claras [risos].

Você vai colocar silicone um dia?

Eu já uso prótese de silicone dessas que são colocadas dentro do bojo do sutiã, mas quero colocar silicone de verdade um dia. O motivo eu não sei, essa é a pergunta que não quer calar [risos]. Ainda não sei quando farei essa cirurgia, comecei a ser mulher há pouco tempo, é muita coisa para pensar [risos]. 

Onde você compra suas roupas?

Compro minhas roupas em qualquer lugar, mas esse vestido, que estou usando hoje, herdei de minha mãe. Eu apenas o encurtei um pouco, mas herdei dela. Ela disse que não usaria mais e me ofereceu, eu aceitei [risos]. Além de roupas, as vezes ganho dela coisas como bijuterias e lenços.

Você tem ícones femininos?

Procuro não ter ídolos, modelos ou metas de visuais inspirados em outras mulheres. Considero distorcida essa visão de tentar se espelhar em alguém. Acho várias mulheres lindíssimas que nem sempre estão em editoriais de moda. 

Você já adquiriu o hábito feminino de carregar o mundo na bolsa?

Já [risos]! Tenho de tudo em minha bolsa. [abre a bolsa e começa a mostrar enquanto fala]. Tenho caderninho, carteira, leque, adoro leque, escova de dentes, porta-prótese dentária, batom, espelho, necessaire com maquiagem básica para retoques, escova de cabelo, lápis, caneta. 

Você se define como bissexual? 

Nem gosto de me definir como bissexual, mas já me relacionei muitas vezes com homens. Nunca namorei com nenhum porque o estigma sempre pesou muito pra mim. Sempre achei meio tabu. Sempre tive um certo problema com meu desejo por homens, mas comecei minha vida sexual tendo relação com um homem. Mas tive três casamentos com mulheres.

Quando você começou a se vestir de mulher você namorava. Isso influenciou no relacionamento de vocês?

O fato de se vestir de mulher não influenciava no relacionamento. Ficamos juntos quatro anos desde que comecei a me vestir de mulher. Ela me ajudou muito.

O que você acha do projeto de cura gay de Marco Feliciano?

Manobra pra continuar sendo assunto. Ele só está querendo criar um fuzuê e chamar atenção da mídia sobre ele e a bancada. Não tem o menor sentido político, é só provocação. A provocação se revelou como a melhor tática desse grupo de extrema direita. É um extremo fundamentalismo que manipula a religião em função de conseguir crescer e se estabelecer como corrente. Eles descobriram que quanto mais conseguirem encantar seu eleitorado e convencê-lo desse conservadorismo, mais eles lucram com essa experiência de gestão da comissão. Eles não têm o que fazer nessa comissão a não ser atrapalhar o projeto dos outros.

Na sua opinião, por que a religião tem tanto pavor da homossexualidade?

Não tem nada na religião que diga a homossexualidade deva ser um tabu. A implicância vem de outro lugar, não vem da busca pelo sagrado, estabelece-se uma relação religiosa para criar a força de uma lei: ‘Deus não quer! É pecado!’. 

O que você achou da repercussão do beijaço dos cartunistas?

Achei legal a repercussão. Gostaria que o beijaço se ampliasse de outras formas, nem precisaria me incluir. Imagine que legal um beijaço entre todas as pessoas? Achei incrível essa coisa de colocar imagens para dialogar, que fiquei pensando que é possível uma construção poética de interação entre as pessoas.


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