Moradores de rua

Julio está há três anos na rua por causa do alcoolismo. Há quatro, saiu de Belo Horizonte (MG), onde foi treinador de boxe, e mudou-se para São Paulo.
Julio está há três anos na rua por causa do alcoolismo. Há quatro, saiu de Belo Horizonte (MG), onde foi treinador de boxe, e mudou-se para São Paulo.
Créditos: Gabriel Quintão

A última vez que vi C foi em maio de 2014, e ele estava eufórico com a perspectiva de o Brasil vencer a Copa do Mundo em casa. O cara tinha trinta e poucos anos, era fã de futebol europeu, morou no exterior, falava japonês, manjava de cinema e música e estava dormindo na rua depois de ser despejado de uma pensão. Eu o esbarrava semana sim, semana não e dividia cervejas com ele. “Ninguém quer estar na rua, mas meu pai ensinou que honra é a coisa mais importante, e eu não quero depender dos outros”. C ficava felizão ao falar da boa vida que tinha antes da morte da mulher, grávida, e do refúgio nas drogas. Quando dormia na praça, porém, ele era “só um morador de rua” e, como tal, tinha medo de ser agredido enquanto sonhava.

C escancarou o fato de que pessoas na rua sonham, ainda que sonhos distantes, e têm histórias de vida. Oito meses se passaram desde que o vi pela última vez, e eu e o bróder fotógrafo Gabriel Quintão andamos para cima e para baixo em São Paulo para fazer esta reportagem. Não o encontramos, mas trombamos pessoas que contaram suas histórias e escreveram, em cartazes, coisas bacanas sobre si mesmas (as imagens estão na galeria aqui em cima). Falamos com gente que foi peão de rodeio, gente que foi treinador de boxe, gente que soldou peça de barco debaixo d’água, gente grávida de gente, gente grávida de vontades.

Um homem me disse: “Muitas pessoas vêm perguntar como é viver assim. Tem estudante que acampa com barraca na rua e fica sem tomar banho, faz o trabalho da faculdade e vai embora, mas não é a mesma coisa. Você nunca vai saber o que é viver sendo humilhado, com medo de ser queimado ou de levar uma pedrada na cabeça. A gente dorme sem saber se vai acordar”.

Quando a Seleção Brasileira levou o quiabo de sete a um da Alemanha, uma das coisas que passaram pela minha cabeça foi o quanto C deve ter ficado frustrado. Na rua, alegria é coisa escassa.

Da última vez que eu o vi, trocamos figurinhas do álbum da Copa, e ele disse: “A gente tem a melhor zaga. Neste ano, vamos ser campeões”. C comprava figurinhas com o dinheiro que ganhava como garçom (a propósito, 70,9% da população de rua exerce alguma atividade remunerada, segundo pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social). C passava fome, mas comprava figurinhas. Corria os olhos pelo álbum e sonhava com o Brasil campeão.

Não vi mais o cara e não sei qual é o paradeiro dele, mas trombei uma porrada de gente como ele por aí, tocando a vida e flertando com a tragédia. A maioria acha que, apesar dos pesares, a vida vale a pena ser vivida.


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Pessoas em situação de rua em São Paulo falam coisas surpreendentes sobre si mesmas