Dono de uma música vibrante, com raízes no rap e a “mente na imensidão”, como dizia Chico Science, Criolo é, paradoxalmente, quase um existencialista. “A gente é uma faísca apenas, não é? Parece que 70 anos terrestres correspondem a um segundo para o universo, então imagina a insignificância da nossa existência”.

Autointitulado apenas como “um cidadão do Grajaú, um cidadão do Brasil” que vive pensando música o tempo todo, em entrevista ao Virgula Música o músico recusa o papel de ídolo. “Se eu fosse bonzão mesmo, algumas coisas que andaram acontecendo de três anos para cá já teriam acontecido quando eu estava com cinco anos de carreira. São 25 para 26 anos, estou fazendo bodas”.

E ele continua: “Ninguém é melhor que ninguém, são momentos da vida, são construções. E aquilo que eu te falei, se eu sofrer e você sofrer, todo sofrimento é uma dor. Se um dia eu abrir um sorriso, alguém da sua família ou da minha família abrir um sorriso, nós estamos iguais naquela situação e é procurar dar o máximo naquele momento porque a vida é muito dura”, diz.

Veja Lyric Video de Duas de Cinco

 
Criolo fez show de lançamento do novo single Duas de Cinco sábado, no Carioca Club, em São Paulo. O músico conversou por telefone sexta-feira com a reportagem do Virgula. Leia a seguir.

Você já deu entrevistas dizendo que pensava em desistir Após o Nó na Orelha. Esse pensamento já voltou alguma vez recentemente?

Na verdade, eu pensava em parar antes do Nó na Orelha.

Seria tipo uma despedida sua da música?

Na verdade depois de 20, 21 anos de carreira, conversando com o (DJ) DanDan, eu achei que nossa trajetória, por exemplo, de subir em palco já era algo que estava chegando ao seu final. É isso. Aí depois veio um amigo falando que gostaria que eu fizesse o registro de algumas canções minhas que ele conhecia e que eu dividia com poucos amigos, para ficar para mim, para minha família. E a partir disso nasceu o Nó na Orelha.

Mas aí depois que veio todo o sucesso, isso aí voltou alguma vez na sua cabeça ou ficou para trás?

Não, porque o grande lance mesmo era dividir. Esse prazer de poder dividir, poder cantar. É algo que vai te alimentando, te manda uma energia. Quando eu digo esse parar, você nunca para de pensar música, já tenho tantos anos nisso, mas, assim, não pensar palco como algo obrigatório, era nesse sentido.

Se tivesse que definir sua missão musical, o que diria?

Eu não me sinto tão grande assim nesse sentido, eu sou um cidadão do Grajaú, um cidadão do Brasil que vive isso, que vive ficar pensando música o tempo todo. E acho que é mais ou menos isso, não sei se é missão, acho muito forte isso. Eu, de uma forma ou de outra, acabei não desistindo de mim no processo.

E o jeito que eu tenho de comunicar com as pessoas é assim, pela escrita…

Você é visto como um messias para alguns. Como você faz para manter o pé no chão?

Não, cara, acho que tudo é muito natural. Eu divido os meus defeitos com todo mundo, sou cheio de defeito igual a qualquer ser humano. O tanto que bate aqui no coração eu tento me melhorar. Acho que é só isso.

No Duas de Cinco tem uma citação de Rodrigo Campos. Qual é a importância das trocas e da criação coletiva para você e para a atual geração?

É tudo muito grandioso o que você está colocando aí, mas é apenas de uma certa forma não estar tão fechado ao diálogo, acho que é só isso. Rodrigo Campos é um grande compositor, uma pessoa de uma sensibilidade enorme, é do extremo leste da Zona Leste. Então, a gente acaba conversando.

Mas você se sente parte de uma cena, ou não?

Acho que todo mundo faz parte de alguma coisa no mundo. E você só vai saber depois da morte, por hora nós somos pessoas que estamos aí e estamos tentando dialogar de alguma forma, todo mundo, todo mundo faz parte de alguma coisa. Você está vivo é inevitável.

A música negra é muito rica, se tivesse que escolher alguns momentos de artistas no Brasil que você considera especialmente importantes, quais você apontaria?

Nossa, cara, quanta responsabilidade, hein? É muita gente, é muita coisa rolando, cara.

Mas uma escolha pessoal sua mesmo, do samba, jazz, reggae, afrobeat, sei lá…

Você entendeu, até o final da sua frase, quando você falou sei lá, é uma coisa que…

É muito grande…

É, então, eu entendo que o seu sei lá não é qualquer coisa. É algo que não dá para mensurar. A gente está aí vivendo, cara, o lance todo. A gente é uma faísca apenas, não é? Parece que 70 anos terrestres correspondem a um segundo para o universo, então imagina a insignificância da nossa existência.

Mas se você tivesse dentro de uma tradição, você se filiaria dentro dessa tradição da música negra, que é sempre presente na sua música, seja pelo lado do rap, da MPB?

Olha, rapaz, se você vir uma foto da minha família, você vai ver que isso já está… Eu sou brasileiro, acho que a negritude é uma coisa que de modo natural já está em minha nacionalidade.

Acho que de toda família…

Acho que do planeta. Eu acredito que hoje, sim, do planeta, todo mundo tem de uma certa forma um encontro ali, depois de algum tempo de existência da nossa espécie no mundo a gente acaba se cruzando.

Você acha que até as barreiras entre estilos, do rap, do funk, MPB, do samba, estão caindo?

Não tem barreira em nada, cara, o ser humano que põe barreira nas coisas. Isso não está na nossa própria espécie, como é que vai fazer com as expressões de arte?

O ponto em que quero chegar é que Edi Rock recebeu críticas por ter ido ao Caldeirão do Huck, você acha que isso é sintomático da patrulha sofrida pelo rap?

Isso aí é outra coisa que você está falando, não de barreira, de estética musical.

É uma patrulha?

Bicho, isso aí é do ser humano, as pessoas têm suas opiniões, sabe? E as nossas opiniões são construídas a partir das nossas vivências, daquilo em que a gente acredita, o que é certo ou errado para gente, daquilo que a gente está tentando entender.

É a opinião, cara, cada pessoa tem a sua, entende? Eu acredito que o Edi Rock é um dos grandes escritores que o nosso Brasil tem, isso é inegável, a contribuição que já foi feita de uma pessoa, de um escritor desse gabarito, agora o que ele faz, o que ele deixa de fazer, eu acho que uma pessoa que construiu algo tão forte… Até para quem não construiu, é questão de cada pessoa, entendeu?

Você surgiu no meio da cena freestyle, das rinhas de Mcs…

Não, na verdade, não, eu não surgi disso, não.

Não? Qual é sua origem?

Na verdade, eu tenho 25 anos de carreira, não é?  Então, na época que eu comecei não rolava isso, não. Eu comecei em 87, 88, cara, final da primeira, no meio da segunda gerações de MCs do país.

Ao mesmo tempo também se você for estudar a fundo o hip hop e o MC, você vai ver também que tinha uma festa jamaicana, que as pessoas tinham saudade e passaram a fazer essa festa em determinado lugar na rua, tinha um DJ e esse DJ, depois de um determinado tempo, sentia a necessidade de se comunicar ali. Da arte que ele já tinha mostrado, ele queria conversar com o público e a partir dessa conversa com o público nasceu o mestre de cerimônias (MC). E isso foi evoluindo até chegar ao que temos hoje. E lá se vão 40 anos de história.

Do que você vê hoje, tem alguns nomes que considera importantes, que estão surgindo e o pessoal ainda não se deu conta?

Olha, rapaz, se você passa uma semana horrível e você foi num lugar e vê um jovem que você nunca viu na vida fazer uma rima, um verso e te animou, aquilo ali foi extremamente importante para a sua construção.

Então, é isso, cara, não importa, o que importa é aquele momento que chega para você, se o cara tem nome, não tem, se tem algo gravado ou não, se o cara só cantou aquela vez na vida, aquela única vez e por acaso você estava ali, vale tanto quanto o álbum coeso de alguém que está na rua há muito tempo, que tem algo consolidado e tem algo importante para toda uma geração.

Esse viver a arte, se sentir tocado por aquilo que a pessoa está ali apresentando. Então tudo tem valor.

O que uma música precisa ter para te tocar?

Ô, cara, como assim, o que uma música precisa ter? Sei lá, cara. Não dá para você descrever o que é a emoção que te alcança.

É a mesma que te move a compor, fazer uma letra, uma melodia?

Eu sei que eu sou muito falho, eu tenho muita coisa para aprender. Então, não dá para te explicar uma coisa que está na minha vida há 25, 26 anos, é difícil. Perguntas assim gigantes… tem coisa que não dá para explicar, cara, apenas não dá para se racionalizar e explicar, a gente vai perder o mundo tentando explicar uma coisa que não tem explicação.

É uma coisa orgânica…

É uma coisa bem de se viver.

Sobre o show deste sábado, você só vai fazer esse show do lançamento do single ou ainda pretende fazer uma turnê?

Olha, rapaz, a gente só canta quando o povo convida, então a gente fica dependendo de convite das pessoas, sempre é assim. Quem quer fazer alguma parceria, quem quer que a gente vá cantar em algum lugar, a gente depende disso.

Agora, o lançamento do single é especial porque é a primeira vez que vou cantar aquelas duas canções, e a gente imaginou algumas outras coisas para isso que a gente vem fazendo.

Quais são as principais mudanças das músicas do single em relação ao Nó na Orelha?

Na verdade, a gente não vê muita mudança porque a gente faz tudo com o coração, é isso que nos move. É a vontade de querer fazer tudo com o máximo de qualidade possível dentro do que está posto para gente. A nossa meta é sempre essa, dentro da nossa possibilidade procurar fazer o melhor. Olhando por esse lado nada muda.

A gente vai construindo as coisas, não é, cara, torna-se um coletivo com os músicos, que estão aí sempre contribuindo.

Tem a rabeca do Thomas Rohrer que trouxe um elemento de música brasileira bem interessante…

Isso. Essas construções, das pessoas que vão se aproximando, vão deixando a sua marca junto nesse processo, tudo é uma construção.

Você se sente conectado com essas manifestações que vêm ocorrendo nas ruas, acha que é uma semente de algo que está por vir?

Acho que todo mundo está conectado quando alguém se manifesta e quer algo de bom para o coletivo, de uma certa forma todos estamos conectados.

Você costuma fazer aparições públicas com camisa do Corinthians, o que poderia ser visto como uma atitude capaz de afastar fãs mais fanáticos de times rivais. Você aceitaria, por exemplo, se engajar numa campanha contra a violência no futebol?

Cara, isso aí está implícito na música. Eu sou totalmente contra qualquer tipo de violência. O que não dá é para pensar que toda fama de uma pessoa vai estar ligada a uma outra coisa, porque aí é se aproveitar do público.

Eu nasci corintiano. Então, é legítimo eu estar com a camisa do Corinthians, não é forçação de barra ou faltar com o respeito às pessoas que torcem para outro time. É natural meu, não é uma fantasia que você põe, olha, isso aqui dá ibope eu vou colocar essa camisa aqui.

E acho que a não-violência já está implícita dentro da minha casa desde que eu me entendo por gente, ou não, desde quando eu estava no ventre da minha mãe, que é uma pessoa que luta, luta, luta por uma  melhoria aqui do Grajaú, luta, luta pela melhoria de qualquer pessoa que chega perto dela. Então, certas coisas estão implícitas.

Todo mundo, todo brasileiro acredito que já faz sua parte para alguma forma para ajudar nessas questões. É o jeito da pessoa, entende?

Acho que é isso. Não sabia que você era tão introvertido, percebi que você não gosta de ser colocado em uma situação de ídolo…

Se nós dois sofrermos um acidente, nós dois vamos precisar de uma transfusão de sangue do mesmo jeito. Se eu fosse bonzão mesmo, algumas coisas que andaram acontecendo de três anos para cá já teriam acontecido quando eu estava com cinco anos de carreira. São 25 para 26 anos, estou fazendo bodas.

Então, cara, ninguém é melhor que ninguém, são momentos da vida, são construções. E aquilo que eu te falei, se eu sofrer e você sofrer, todo sofrimento é uma dor. Se um dia eu abrir um sorriso, alguém da sua família ou da minha família abrir um sorriso, nós estamos iguais naquela situação e é procurar dar o máximo naquele momento porque a vida é muito dura. Ninguém é melhor que ninguém.

Existe uma geração nossa, uma geração extremamente solidária, extremamente sensível, comunicativa, e que procura fazer alguma coisa para o próximo e eu só aprendo aí. E é isso, cara. As coisas andam acontecendo em nosso Brasil, muita coisa que não dá para mensurar porque estamos vivendo a história. Só depois que acabar uma página que a gente para e pensa, vê qual é que é. Essas outras gerações que vão ver o que anda acontecendo aqui.

Aqui nós vamos tentar contribuir ou pelo menos não atrapalhar quem quer fazer algum lance porque todo mundo desde que nasceu já está fazendo, você já está envolvido com alguma coisa. É trabalho de formiguinha, entende.

Tem de ser pé no chão de saber que você está aí e tal. E é isso, não é? Vamos viver. Todos temos defeitos, todos, todos. E um pouquinho de virtude que um tem, que o outro tem, cara, faz uma diferença no sentido, não no sentido de “ah, sou virtuoso”, mas no sentido de vamos pelo menos vibrar positivo por alguém, pelo menos tentar, tentar se melhorar.


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Criolo recusa papel de ídolo: ‘Sou muito falho, tenho muita coisa para aprender’