O grupo de rap Racionais MC’s, o mais representativo do hip hop no Brasil, comemora 25 anos de carreira em 2014. Para celebrar a data, os Racionais farão uma turnê pelo país, com início nesta sexta-feira (09), na Fundição Progresso, Rio de Janeiro. “É apenas um reencontro nesta vida, neste plano. Estamos juntos há 400 anos”, afirma o DJ KL Jay em entrevista ao Virgula Música.

“Uma vez uma mulher, muito espiritualizada, me disse, ao ver uma fotografia nossa, que nós estamos juntos há séculos”, explica. Segundo o rapper, o grupo não esperava fazer tanto sucesso quando se reuniu há um quarto de século: “nós sabíamos que tínhamos um grupo forte e bom, mas não sabíamos que ia chegar a tanto. O artista nunca espera”.

Referência do rap nacional, o grupo formado por KL Jay, Mano Brown, Ice Blue e Edi Rock começou a carreira no final da década de 80. O primeiro lançamento oficial saiu em 1988, quando o selo Zimbabwe Records lançou uma coletânea em vinil com o título Consciência Black, Vol. 1. Nesse álbum, estavam as duas faixas que despertaram a atenção do público para o grupo: Tempos Difíceis e Pânico na Zona Sul.

Quase dez anos depois, em 1998, os Racionais lançaram o agora clássico Sobrevivendo no Inferno, editado pelo seu próprio selo, o Cosa Nostra. Com hits como Diário de um Detento, Capitulo 4, versículo 3 e Periferia é Periferia o disco fez sucesso imediato e bateu recordes de vendas para um trabalho de rap no país: 500 mil cópias. O trabalho foi o responsável por colocar o grupo na mídia e apresentá-lo ao grande público.  

Fora dos estúdios desde 2002, quando lançaram Nada como um Dia após o Outro Dia, os Racionais prometem um disco de inéditas para 2014. “Estamos trabalhando nisso. Ainda não posso dizer muita coisa, não temos o material completo. Mas, com certeza, algumas faixas novas estarão no repertório da turnê de 25 anos”, esclarece.

O DJ admite que, apesar dos pedidos dos fãs, alguns clássicos como Tempos Difíceis e Mulheres Vulgares não farão parte das apresentações: “Há algumas músicas no nosso trabalho que não cabem mais. São faixas que não se encaixam mais no momento, no que nós somos hoje. Embora sejam músicas que marcaram nossa história, nós não conseguimos mais cantá-las”.

Em ano de Copa do Mundo no Brasil, KL Jay se declara completamente contrário à realização no evento no país. “Não estamos preparados”, afirma, antes de explicar: “não temos estrutura para um evento desse porte. Já é um grande fiasco e o mundo todo sabe disso”, diz. “Sinceramente, não pretendo ver os jogos. Eu não concordo, não aprovo e não vou participar”, garantiu.

Para o rapper, a administração da presidenta Dilma Rousseff é “um grande fiasco”. “Para mudar esse país é necessário ter coragem de morrer. É preciso estar disposto a morrer. As mudanças precisam ser drásticas e esbarram em muitos interesses de pessoas poderosas. Eu ainda não vi um chefe de estado pronto para encarar tudo isso”, explica.

Leia abaixo, na íntegra, a entrevista com KL Jay, em que o rapper falar sobre as mudanças na sonoridade dos Racionais, política, economia, funk ostentação e racismo.

Virgula Música: O que vocês pensavam sobre o futuro quando começaram com os Racionais MC’s? Para vocês, no que tudo isso iria dar?

KL Jay: Eu ouvi o Dr. Dre falando uma coisa do disco dele, o The Chronic, que é o seguinte: “eu sabia que era um disco bom, mas eu não sabia que ia fazer tanto sucesso”. Então, nós sabíamos que tínhamos nos encontrado novamente, porque essa nossa relação não vem de hoje, é apenas um reencontro nessa vida, nesse plano. Eu sabia que era um grupo forte e bom, mas não sabíamos que ia chegar a tanto. O artista nunca espera.

Virgula Música: Vocês tem essa coisa de espiritualidade entre vocês? É uma filosofia do grupo?

KL Jay: Não. Isso é uma coisa muito particular. Eu falo sobre isso sempre e falo para eles. Não sei se eles acreditam, mas eu acredito. Uma vez uma mulher, muito espiritualizada, me disse que ao ver uma fotografia nossa, ela teve certeza que de nós nos encontramos há 400 anos.

Virgula Música: Sobre a turnê em que vocês celebram 25 anos de carreira: como é para montar um show desses? Como vocês estão escolhendo o repertório?

KL Jay: Estamos nos preparando para isso já faz algum tempo. O show terá uma grande estrutura, bem bacana. Temos uma produtora, que é a ‘Boogie Naipe’, por trás disso tudo, então, as coisas estão mais fáceis. Nós dirigimos e eles organizam.

Virgula Música: Ao longo desses últimos anos, os Racionais têm feito shows que não são mais tão inatingíveis para a classe média. Vocês se apresentam em casas de shows mais caras, em festivais como o Lollapalooza e também na Virada Cultural. Você acha que hoje um público muito maior tem acesso aos Racionais do que na década de 90?

KL Jay: Nós ficamos mais velhos e abrimos a mente, acho que começa por aí. Em segundo lugar: a música não tem fronteiras. Ela está aí disponível para todo mundo que se identificar com o esse som. Hoje, nós temos essa noção e enxergamos isso. A arte é para todos: preto, branco, pobre, rico, classe baixa, classe média. Estamos seguindo um fluxo natural.

Virgula Música: Para os shows da turnê de 25 anos, vocês estão preparando algumas coisas novas?

KL Jay: Sim, estamos. Tudo será temático. Teremos cenários, entradas de show. Sempre dá para criar uma coisa nova, estamos trabalhando nisso. A ideia é fazer uma retrospectiva musical. Vamos tocar os clássicos e algumas músicas do disco novo, que são completamente inéditas.

Virgula Música: E, de alguma forma, os fãs puderam participar da escolha desse repertório?

KL Jay: Os fãs vivem pedindo músicas, mas nós temos que nos sentir confortáveis para cantar. Há algumas músicas no nosso trabalho que não cabem mais. São faixas que não se encaixam mais no momento, no que nós somos hoje. Embora sejam músicas que marcaram nossa história, nós não conseguimos mais cantá-las. Só vamos cantar o que a gente quer.

Virgula Música: Quais seriam essas faixas, que não representam mais os Racionais de 2014?

KL Jay: São músicas que a gente não canta mais como Mulheres Vulgares, Tempos Difíceis e Hey Boy.

Virgula Música: Há 25 anos éramos um país muito diferente. Houve muitos avanços na questão do consumo para as classes menos favorecidas. Algo que resultou acabou fomentando coisas como o funk ostentação. Como você vê a diferença entre a geração de vocês, em que os pais se matavam de trabalhar para garantir o jantar, e essa nova geração, em que os jovens têm acesso ao tênis de marca?

KL Jay: Foi outra época, outra mentalidade, outra realidade do país. O país mudou, eu até digo que foi obrigado a mudar. A internet também tem grande participação nisso. O governo trouxe algumas mudanças. Nós vivemos uma época mais democrática e mais livre. As pessoas têm menos culpa de ter, sabe? Nós atravessamos isso e estamos vivendo essa evolução.

Virgula Música: Você acha que, de alguma forma, é mais positivo, do ponto de vista social, que os adolescentes vivam e cantem essa coisa de consumo ao invés de cantar sobre fome, violência e preconceito?

KL Jay: Eu sempre digo que a verdadeira ostentadora é a televisão. Quem promove a real ostentação é a mídia com os comercias, novelas e filmes. A música está na onda, é produzida na onda disso tudo. Também, é claro, tem uma questão social. Todo mundo quer se sentir bonito, se sentir importante e poderoso. Embora, quero deixar isso bem claro, para mim, esse não seja o real valor das coisas. Para mim, outras coisas são importantes. Mas, os carros bonitos estão aí, as roupas bonitas também. Se as pessoas podem comprar, porque não? Porque não ter?

Virgula Música: É isso que você diz ser mais democrático?

KL Jay: Sim. Hoje uma pessoa que ganha um salario mínimo pode entrar em um restaurante fino e comer a mesma comida ao lado de bacana, do rico, do milionário. Por outro lado, alguns milionários andam de metrô, junto com os pobres. Então eu acho que vivemos uma era mais democrática em nosso país. Ainda existe uma distância entre os ricos e os pobres. Mais que isso: existe uma distância entre as pessoas.

Virgula Música: Que ainda falta melhorar por aqui?

KL Jay: Ah, precisamos melhorar em tudo. É necessária uma revolução na saúde, na educação e na tecnologia. Precisamos de um corte drástico também na carga tributária do país.

Virgula Música: Que você acha sobre as Copa no Mundo no Brasil?

KL Jay: Eu acho que não estamos preparados. As provas estão aí, claras. Nós não temos estrutura para isso, já está sendo um fiasco e o mundo todo sabe disso. Eu não concordo, não aprovo e não vou participar.

Virgula Música: Mesmo com essa opinião sobre o evento, que é a mesma de muitos brasileiros, você vai assistir aos jogos do Brasil na Copa?

KL Jay: Olha, sinceramente, não vou. Eu não estou nem aí para isso. Não quero ver e não quero participar. Não tenho expectativa nenhuma e, para mim, não é uma coisa que faça diferença. Eu não me importo com a Copa.

Virgula Música: Sobre o nosso atual governo federal, que é o responsável por tudo isso, qual a sua opinião?

KL Jay: É um fiasco.

Virgula Música: A Dilma é uma má administradora?

KL Jay: Com toda certeza. Para mudar esse país é necessário ter coragem de morrer. É preciso estar disposto a morrer. As mudanças precisam ser drásticas e esbarram em muitos interesses de pessoas poderosas. Eu ainda não vi um chefe de estado pronto para encarar tudo isso.

Virgula Música: Houve um momento em que vocês, na figura dos Racionais MC’s, se aproximaram do governo Lula.

KL Jay: O Lula foi importante para o país. Ele teve vontade política e mudou alguma coisa, mas ainda falta muito. O que ele fez foi pouco. O Chefe de Estado que esteja disposto a realmente mudar esse país precisa fazer uma reforma drástica nas estruturas. Investir em educação e tecnologia. Esse é o único caminho para que sejamos respeitados mundialmente e realmente nos tornarmos uma nação.

Virgula Música: É preciso uma revolução?

KL Jay: Sim, é bem por aí. Também é de extrema importância mudar a mentalidade racial do país.

Virgula Música: O Brasil ainda vive um apartheid silencioso?

KL Jay: É um país racista pra car*lh*! E esse racismo vem do Estado. É uma mentalidade do Estado que vai passando para as demais camadas.

Virgula Música: Qual a participação da polícia nisso?

KL Jay: A polícia é o braço armado do Estado e suas ações deixam claro o quanto o governo é racista.

Virgula Música: Em algum momento já passou pela sua cabeça participar da política de uma forma mais intensa? Talvez se candidatando a algum cargo político?

KL Jay: De forma alguma (risos). Isso seria promover uma guerra civil. E eu e a minha equipe, em uma situação dessas, teríamos que estar dispostos s morrer.

Virgula Música: E como seria seu plano de governo?

KL Jay: Eu contrataria o melhor economista do mundo, que tenha a real preocupação de mudar o país. Essa seria a primeira coisa que eu faria. Nesse mundo material em que vivemos, é a economia que dita às regras. Eu também mandaria muita gente embora e colocaria todos os corruptos na cadeia. Tenho certeza absoluta que eu seria perseguido (risos). Mas tudo seria feito na base do exemplo

Virgula Música: Como vocês repassam para os seus fãs bons exemplos de cidadania?

KL Jay: É na prática, no nosso cotidiano. O KL Jay bota em prática a sua cidadania jogando o lixo no lixo, sendo sempre honesto. Indo no caixa da padaria devolver R$ 0,50 que o cara me deu a mais no troco. Investindo em cultura. Dando bom dia, boa tarde e pedindo licença para entrar nos lugares. Compartilhando o dinheiro que eu ganho e ajudando outros artistas a mostrarem seu trampo e montar sua própria estrutura.

Virgula Música: Quem são esses artistas que vocês estão ajudando?

KL Jay: Cada um faz a sua parte. O Brown tem os amigos dele que ele ajuda e apoia. Dá uma força para o Boy Killa, o Big da Godoi e o Helião, do RZO. Eu estou montando uma cooperativa de produtores que envolve vários DJs. Caras muito bons que precisam de espaço para trabalhar. Eu também ajudo os caras trocando uma ideia, dando conselhos e participado das músicas. Fazendo shows juntos, chamado para abrir shows dos Racionais.

Virgula Música: Se você precisasse traduzir para uma pessoa que acabou de chegar ao planeta terra o tipo de som que os Racionais MC’s fazem hoje? Como seria essa explicação?

KL Jay: É uma ótima pergunta. Nós Continuamos fazendo a música da liberdade, a música da mudança. Essa música é o rap. 

SERVIÇO: 

Racionais MC’s – Turnê de 25 anos
Onde: Fundicão Progresso, RJ – R. dos Arcos 24 Lapa – Rio de Janeiro
Quando: 9 de maio, sexta-feira
Ingressos: R$ 80 (há meia-entrada)
Abertura: Rael e Flow Mc
Informações: www.fundicaoprogresso.com.br

Veja AQUI a agenda completa da turnê. 


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"Estamos juntos há 400 anos, é coisa de outras vidas", diz KL Jay sobre turnê de 25 anos dos Racionais MC's