Está em cartaz no Brasil o mais recente longa-metragem dirigido por Robert Zemeckis: A Travessia. Como se sabe, o filme narra a inacreditável porém real façanha do equilibrista francês Philippe Petit, que em 7 de agosto de 1974 atravessou o abismo entre as (hoje falecidas) torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, caminhando por um cabo de aço.

Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt) in TriStar Pictures' THE WALK.

A loucura de Petit, que atravessou a distância entre as torres sem nenhuma proteção (ou seja, o risco de morte era imenso), já tinha virado tema do documentário O Equilibrista (2008, que venceu o Oscar de Melhor Documentário em 2009), e agora foi transformado em filme de ficção pelas mãos de Zemeckis.

Tá bom, mas o que A Travessia tem em comum com o filme mais famoso de Zemeckis, De Volta para o Futuro? (1985, filme esse que tem sido tema de muitos assuntos no mundo todo, por conta dos 30 anos de seu lançamento).

Não parece, mas tem bastante. Basicamente podemos dizer que A Travessia é uma lente de aumento em cima de uma única sequência de De Volta: o clímax final, quando Marty McFly (Michael J. Fox) precisa voltar ao futuro, ou melhor, viajar de 1955 para 1985.

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Para isso, Doc Brown (Christopher Lloyd) arma um plano que consiste em canalizar a energia de um raio que cairá sobre a torre do relógio da praça central, para que essa energia seja a força motriz que vai fazer com que o DeLorean dirigido por Marty seja despachado para 1985.

Para o raio ser um transmissor de energia, Doc instala um cabo na torre do relógio, onde o raio cairá antes do início da tempestade (e essa informação foi dada pelo próprio Marty, que a trouxe por acaso num panfleto que recebeu em 1985). O raio deve cair na torre, atingir o cabo, que desce sobre a praça e está plugado num outro cabo, que por sua vez tem um gancho pendurado. O raio chegará, finalmente, à ponta do gancho, e o DeLorean passará embaixo dele exatamente no instante em que o raio chega.

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Esse plano mirabolante, que em De Volta para o Futuro é mostrado em uma vibrante sequência de 5 minutos, em A Travessia dura mais de 40 minutos. Analisemos:

Em A Travessia, Philippe quer atravessar o espaço entre as torres gêmeas, um ato ilegal. Para isso, reúne um time de “doidões” que vai ajudá-lo a executar o plano. A primeira metade do filme mostra o planejamento do plano. A segunda, a execução do plano.

Estruturado como um filme de suspense, A Travessia mostra como Philippe e sua turma conseguem penetrar nas torres gêmeas, subir até a cobertura e preparar o equipamento para que ele possa caminhar sobre o cabo.

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A execução do plano é tensionada por diversos contratempos que vão atrasando as ações (existe um prazo limite: eles precisam fazer tudo durante a madrugada, pois às seis da manhã Philippe tem de iniciar sua travessia, sob pena de ser apanhado por vigias), provocando nervosismo nos personagens e na plateia. Se eles não conseguirem fazer tudo a tempo, Philippe nunca mais poderá fazer a caminhada.

Assim como Marty: se algo der errado no plano de Doc, e o raio cair sem que o DeLorean esteja passando naquele exato instante, Marty fica preso para sempre em 1955 – pois, para viajar de 85 para 55, o carro usou (e gastou) plutônio, material impossível de encontrar em 55. A única força compatível com a energia do plutônio é um raio (capaz de gerar os tais 1.21 jigawatts que Doc menciona).

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Dessa forma, Philippe e Marty se parecem: ambos precisam de ajuda para que um plano complicado e arriscado possa ser executado. E o sucesso de ambos os planos se apoia, literalmente, num elemento: um cabo.

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Philippe e seu ajudante tímido tentam, às pressas, preparar toda a parafernália dos cabos e cavaletes presos às torres, que acaba ficando pronta no último minuto. Doc Brown, no outro filme, tem de arriscar a vida subindo no alto da torre, aos 45 do segundo tempo, porque a ventania derrubou o cabo que ele havia colocado lá em cima. E para piorar, quando está lá em cima, o outro cabo se solta do plug – e ele acaba mergulhando sobre a praça, pendurado no próprio cabo, para aterrisar na praça e ligar o plug dos cabos, no exato instante em que o raio cai – uma cena que emocionou multidões.

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Quando por fim o raio despacha o DeLorean, que desaparece, Doc pula de alegria, comemorando o feito. Quem também pula e comemora é o ajudante de Philippe, quando vê que este começou a caminhar sobre o cabo – o plano deu certo.

Marty McFly e Philippe Petit tornam-se, assim, ainda mais semelhantes: são heróis que desafiam as leis da Terra. Um viaja no tempo, o outro provoca a lei da gravidade; ambos dependem de um “simples” cabo; e por último, mas não menos importante: ambos têm como “guru” um “tiozinho doido” – Doc Brown é a inspiração de Marty; e Philippe conta com o apoio moral e as lições ensinadas pelo velho excêntrico equilibrista interpretado por Ben Kingsley.

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Essa comparação entre os dois filmes mostra a genialidade de Robert Zemeckis – “repetindo” seus temas, estratégias, estruturas e universo de ação, ele prova ser um verdadeiro cineasta-autor. Como muitos cineastas antológicos já disseram, o verdadeiro cineasta autoral faz, disfarçadamente, “sempre o mesmo filme”.

Fellini, Visconti, Pasolini, Buñuel, Truffaut, Hitchcock, Fassbinder, Polanski, Almodóvar, Scorsese, Spielberg, Coppola, Tarantino, Woody Allen – todos deixaram suas marcas em diversas obras-primas que, analisadas detalhadamente, mostram muito mais semelhanças entre si do que se nota à primeira vista.

Faça o teste. Assista A Travessia e depois reveja De Volta para o Futuro!

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O que "De Volta para o Futuro" e "A Travessia" têm em comum, além de Robert Zemeckis? Muita coisa, começando por um cabo